O Estado tem algo de singular: ele é o único tipo de sistema político que é fundado na racionalidade. A legitimidade do Estado tem origem em sua relação especial com a racionalidade. Todos os outros tipos de sistema político são diferentes, alguns deles são baseados na tradição, alguns outros no carisma, mas o Estado é considerado, acima de tudo, como uma expressão racional da ordem política. Por esta razão, espera-se do Estado ser universal, por esta razão, o Estado tem que ser expandido em todas as partes do mundo, mesmo se as culturas, histórias, estruturas sociais, são bem diferentes do modelo ocidental. Esta exportação do modelo estatal teve lugar na América, em direção à América durante o século XIX, e em direção à África e Ásia com o processo de descolonização. Se levarmos em consideração a aventura americana, o processo foi razoavelmente bem sucedido por uma razão bem clara, a principal cultura na América, na América do Norte, na América do Sul vem da Europa, e os principais formadores do Estado em todas as partes da América foram treinados como líderes ocidentais, e eram realmente treinados pelas culturas ocidentais que herdaram. Agora é bem diferente para o caso africano e asiático, por muitas razões, e eu somente apontaria três razões. A primeira é a questão da temporalidade. A descolonização significa construir um sistema político, o sistema político independente, o sistema político soberano, em período muito curto de tempo. O tempo da descolonização é bem diferente do tempo da construção do Estado na Europa. Tenham em mente que o Estado-nação europeu ocidental foi construído ao longo de um longo processo, que durou vários séculos, provavelmente do fim da Idade Média até o século XIX. Mas a África e a Ásia e nesses continentes, estes países que eram descolonizados não tiveram séculos para construir seu próprio sistema político, eles não tiveram nem mesmo alguns anos, eles tiveram, eu diria, alguns minutos, aqueles minutos da independência. A segunda razão, o segundo fator, é, claro, a hegemonia cultural do ocidente, que foi muito importante, clara, óbvia, densa durante o período colonial, mas ainda também no tempo da descolonização. Quer dizer, o único modelo que os líderes da independência tinham em mente era o modelo ocidental, e para um nacionalista, um nacionalista africano ou para um nacionalista árabe, o modelo político que eles tiveram que implementar era obviamente o modelo ocidental de Estado. A terceira razão é uma razão de hegemonia política, quer dizer, para ser admitido na arena internacional na segunda parte do século XX - quer dizer, o momento exato da descolonização – significou se apresentar como um Estado, como um Estado formal. Se um novo sistema político quisesse ser admitido na ONU ele teria que apresentar os principais atributos do clássico, tradicional, modelo ocidental de Estado. Estas razões transformam os formuladores do Estado em importadores, e esta é provavelmente uma das principais características e das principais ambiguidades, até uma das principais contradições da descolonização. É uma contradição porque um formulador do Estado era fortemente nacionalista, e, entretanto, ele tinha de construir em sua sociedade, em sua cultura, um sistema político que imitava o sistema político da potência colonial. Esta forte contradição está provavelmente na base do processo que teve lugar durante a descolonização. Estes importadores foram todos socializados pela cultura ocidental, por meio das missões cristãs. E vocês sabem como o cristianismo na África contribuiu para socializar e depois para treinar os novos líderes como Julius Nyerere na Tanzânia, na Tanganica nesta época, ou por exemplo Fulbert Youlou no Congo francês, ou o líder nacionalista Baath Michel Aflak que foi treinado na escola cristã. Então, o cristianismo é um importante agente desta importação. O segundo agente são as universidades ocidentais, quer dizer, os principais líderes nacionalistas foram para universidades ocidentais para serem educados. Nehru, o grande líder nacionalista indiano, foi educado em Cambrigde, ou Kwame N’krumah que é considerado como um dos líderes mais progressistas e anti-ocidentais da África, e que foi o primeiro presidente de Gana foi educado na Universidade de Lincoln nos Estados Unidos. E esta é provavelmente uma das principais bases desta contradição, quer dizer, a ideologia nacionalista na África e na Ásia foi ensinada nas universidades ocidentais e foi moldada de acordo com as principais estruturas de significado que são as características da cultura ocidental. O terceiro agente foi o parlamento ocidental, a maior parte destes líderes ocupando lugares no parlamento francês ou britânico, onde foram treinados como o líder da Costa do Marfim Houphouet-Boigny, que foi até ministro no governo francês da Quarta República, ou Mamadou Dia e Léopold Sédar Senghor no Senegal e assim em diante. E o quarto agente de socialização são os partidos ocidentais, o partido socialista, o partido comunista, que tiveram um papel muito importante em socializar Sékou Touré na Guiné, Ho Chi Minh que participava do Congresso de Tours em 1920 em que foi criado o Partido Comunista francês, e nós podemos adicionar também Zhou Enlai ou Deng Xiao Ping que foram educados na França ao redor deste ambiente comunista. Estes importadores estavam desencadeando dois tipos de importações, o que eu chamaria de modernização conservadora e o que eu chamaria de modernização revolucionária. A modernização conservadora é uma maneira de manter o trono para os príncipes tradicionais que estavam no poder formalmente e informalmente durante o regime colonial, e que tentaram salvar seus tronos e suas coroas importando alguns elementos desta cultura ocidental para consolidar seu poder e para trazer esta nova independência. É o caso do Japão Meiji, é o caso do império otomano, que foi ocidentalizado ao longo do século XIX para reforçar o império otomano que se tornava mais e mais frágil, é o caso da Pérsia, é o caso de Sião, que foi mais tarde Tailândia, é o caso de Burma e assim em diante. E a modernização revolucionária é a mesma importação mas não para consolidar a legitimidade tradicional, mas para quebrar a legitimidade tradicional, e para construir um Estado nas bases de uma nova legitimidade que era uma legitimidade importada. E este é um outro paradoxo, quer dizer, a modernização revolucionária significou a mobilização dos elementos tradicionais da cultura ocidental para quebrar com os elementos tradicionais da ordem tradicional nas sociedade árabes ou africanas. É o caso, por exemplo, de Nasser no Egito, ou do partido Baath na Síria ou no Iraque, ou da FLN na Argélia e assim em diante. Senhoras e Senhores: Coloco a questão, podem essas importações serem bem sucedidas? É possível importar um Estado como alguém importa uma planta, uma fábrica de carros ou tipos diferentes de atividades econômicas? Claro que não. Esta importação foi amplamente uma falha. É uma falha porque estas instituições importadas não eram legítimas. É muito difícil conceber a legitimidade da ordem política que não é gerada de dentro mas que é importada de fora. É por isso que, nos novos Estados, na África ou na Ásia e especialmente no mundo árabe a sociedade civil, e mesmo a tradicional sociedade civil, aparece hoje como mais legítima do que o poder político, porque o poder político parece importar estruturas de significado vindas de fora. E nestas situações o poder está ficando autoritário, quanto menos um poder é legítimo, mais ele é autoritário. Isto é provavelmente a principal fonte do autoritarismo que nós podemos encontrar nos novos países independentes. E por estas razões também, este poder é afetado por uma forte extroversão, quer dizer porque eles não são legítimos dentro, eles têm que procurar fora por alguns recursos novos, é por isso que estes novos líderes são paradoxalmente mais dependentes das potências, das potências ocidentais e também das orientais. Isto é também, como veremos mais tarde, uma das fontes dos Estados falidos e das sociedades de guerra que nós observamos na África ou no mundo árabe ou mesmo na Ásia. É por isso que esta contradição entre um Estado oriundo de fora e a pressão vinda da sociedade local é uma das principais características deste novo mundo e da nova clivagem Norte versus Sul.