O islã e a política oferecem um outro modelo que é bem diferente do cristianismo, e é por isso que é provavelmente tão difícil tomar em consideração o islã quando nós o observamos a partir da cultura ocidental e dos países ocidentais. É um outro modelo porque quando o islã foi criado no século VII pelo profeta Maomé, ela era acima de tudo baseado na comunidade, a famosa Umma, a comunidade daqueles que compartilhavam a mesma fé. O islã foi criado em um contexto histórico muito especial que era um contexto de uma fragmentação tribal grande, muito danosa e dolorida. Esta fragmentação, que nós podíamos observar neste momento na península arábica, estava criando e perpetuando um tipo de anarquia que era muito prejudicial para todo o povo e para os comerciantes na península. Então, o profeta Maomé buscou definir uma nova ordem de integração política e social, esta integração era uma prioridade no contexto de fragmentação desse período, e o Islã tem que ser considerado, abordado, entendido, como uma maneira de superar isso. É por isso que, enquanto o cristianismo está expandindo a delegação e a representação, o islã está expandindo, enfatizando, unidade e solidariedade, integração. Todas as principais características e criações nesta religião foram focadas nesta necessidade de integração. Quando o profeta Maomé decidiu sair da cidade de Meca para criar uma outra cidade, ele estava criando um novo sistema integrado, em que religião, estruturas sociais, estruturas políticas, o direito, estavam fortemente conectados e este é o ponto inicial desta visão não somente de integração, mas também da política e da religião fortemente convergentes. A nova cidade que foi criada não foi uma cidade secular, não foi uma cidade religiosa, era uma cidade em que as funções humanas estavam conectadas, fortemente conectadas e convergentes. É por isso que na tradição muçulmana, o conceito de Umma é tão importante, quer dizer, a base real do islã não é mais a igreja, uma igreja centralizada, mas a comunidade de indivíduos, é a solidariedade de indivíduos, criando um novo corpo, que é o corpo muçulmano, a comunidade muçulmana de fiéis. E é por isso que depois da Umma, o mais importante conceito é Tawhid, o que quer dizer unidade. Como o principal tema que estava em jogo era uma perigosa fragmentação, a nova invenção era totalmente organizada ao redor do conceito de unidade, Tawhid, é por isso que Deus é unidade, é único e não é mais considerado através de três pessoas, como no caso do cristianismo. Unidade de Deus, unidade e unicidade da legitimidade, nesta visão, apenas uma legitimidade deve ser considerada, e é a legitimidade oriunda de Deus. Nenhuma legitimidade é esperada dos indivíduos e dos seres humanos. A única fórmula possível de legitimidade tem que ser encontrada na vontade de Deus, e é por causa disso a famosa oposição cristã entre uma legitimidade temporal, secular uma legitimidade espiritual e religiosa, esta coexistência de duas legitimidades é totalmente sem sentido no islã. E esta unicidade da legitimidade é dada por uma fonte única, que é a lei de Deus, quer dizer a Charia. Depois da Umma e do Tawhid, a charia assume um papel muito estruturante nesta visão global, não somente religiosa, mas uma visão global do islã. Se há um Deus, uma comunidade, uma legitimidade, uma lei, então a submissão dos indivíduos a esta comunidade, a esta lei, e é claro a Deus, tem que ser forte, uma submissão total, que é muito mais exigente do que a submissão cidadã que tem lugar na tradição ocidental. Obediência, submissão a Umma, à verdade, quer dizer à charia, a Deus. E assim, estes elementos principais organizam uma nova política em que a solidariedade ao redor de Deus e de sua vontade é a pedra angular. Isso implica algumas consequências importantes. Primeiro de tudo, na tradição muçulmana, na cultura muçulmana, legitimidade de poder, de poder político é baixo. Se a única fonte de legitimidade vem de Deus, a legitimidade do príncipe humano é sempre uma fórmula muito pobre e fraca. É por isso que, eis a segunda consequência, a legitimidade do protesto é muito mais importante e muito mais estruturante que a legitimidade do poder humano, e é por isso que, nesta visão, protestar é muito mais legítimo do que reger o poder, que controlar a cidade. Este tipo de inversão se compararmos com o Cristianismo, e muito muito central, muito crucial. Como a cultura ocidental está trazendo um modelo que organiza a legitimidade do Estado, que provem a legitimidade do Estado, o islã está muito mais inclinado a prover a legitimidade para protestar. E a última consequência encontra-se na lei. A lei é mais importante do que o poder e isso é um pouco equivalente ao cristianismo reformado, quer dizer; no cristianismo reformado, como mencionei, a lei é muito mais importante que o poder em si mesmo. Nós podemos encontrar uma visão similar neste conceito de ordem política, que é derivado da história muçulmana. Existe um tipo de contradição porque se o islã foi criado para conter o risco de fragmentação, a nova fórmula política é muito mais orientada para protestar do que para sustentar o poder, e, lutando contra a fragmentação, o islã está talvez enfraquecendo o poder humano que não é capaz de encontrar sua própria legitimidade. Isto é provavelmente uma das fontes da instabilidade política de todos os sistemas políticos, que foram concebidos, construídos no mundo por meio da mobilização da cultura muçulmana. É claro, senhoras e senhores, temos que levar em consideração a pluralidade do islã. Eu tentei dar os eixos principais do islã em uma perspectiva global, mas nós temos que ter em consideração várias posições. A primeira seria entre o sunismo e o xiismo. Como vocês sabem, o xiismo é uma visão do islã vinda daqueles que reforçavam a importância da herança na legitimidade do califa. O califa era consideradao um descendente do profeta e o xiismo apoiava uma visão da política, que era exercida por aqueles que descendiam do profeta. E então desta visão nós podemos encontrar um tipo de valorização do papel da hierarquia. Valorizar o papel da hierarquia é dar um novo modelo ao Islã e à política. Quando o sunismo não considera que o califa tem que ser escolhido entre os descendentes do profeta, e então é mais descentralizado e dá maior importância ao papel dos pregadores e das redes de pregadores. Nós também temos que diferenciar internamente o sunismo. O sunismo é também constituído por várias visões. O wahhabismo, oriundo da Arábia Saudita, reforça o papel das reais e fundamentais crenças do islã, quando um islã reformado tomou lugar em vários momentos tendendo a adaptar o islã à modernidade. Temos também que discriminar entre sociedades, como Clifford Geertz salientou, o islã no Marrocos e o Islã na Indonésia não são os mesmos. É por isso que quando nós levamos em consideração o islã e sua política, nós temos que considerar a especial e específica história do islã em cada país.