Espaço mundial recortado por desigualdades. Esse é o primeiro ponto sobre o qual eu queria trabalhar com vocês, em torno das desigualdades existentes dentro dessa ordem mundial contemporânea. O primeiro aspecto dessa desigualdade que me parece absolutamente fundamental: a desigualdade entre os Estados. É evidente que existem assimetrias e desigualdades e hierarquias entre os Estados. Desigualdades com relação ao tamanho dos seus territórios: grandes Estados, grandes extensões territoriais, a exemplo da Federação Russa, dos Estados Unidos da América, do Canadá, o próprio Brasil, a China, grandes extensões territoriais, grandes Estados ao lado de pequenos Estados insulares, Estados territoriais alguns inclavados, sem saída para o mar. Então, essa é uma primeira desigualdade importante com relação à dimensão propriamente territorial dos Estados que me parece que deve ser salientada porque é uma dimensão mais ou menos permanente ao longo da história da construção dessa ordem internacional. Outro aspecto que caracteriza a desigualdade com relação a esse primeiro quesito da desigualdade entre os Estados é a demografia. Estados muito populosos, com uma demografia muito importante, a exemplo evidentemente da China, em primeiro lugar, e da Índia, em segundo lugar, mas países igualmente populosos, como a Indonésia, como o México, como o Brasil, como os Estados Unidos ou a própria Nigéria - podemos pensar no continente africano. E Estados com população muito menor. É evidente que essa desigualdade, essa diferença em termos populacionais vai ter implicações na forma como os mercados se organizam, na forma como os mercados domésticos podem desempenhar algum tipo de papel no modelo de desenvolvimento desses próprios Estados. Mas há outros aspectos ainda que marcam essa primeira dimensão da desigualdade que eu chamei aqui da desigualdade entre os Estados que é a capacidade de presença internacional desses diferentes Estados, seja em função de algo que é determinado pelas normas internacionais com relação aos processos decisórios, determinadas organizações internacionais das quais participam determinados Estados, outros âmbitos institucionais dessas mesmas organizações aonde alguns Estados participam com o estatuto diferenciado. Mas também existe um outro aspecto da presença internacional dos Estados com relação às suas capacidades de exercício da diplomacia. Então, o Brasil, por exemplo, é um país que tradicionalmente, ao longo do século XX, sempre teve uma presença internacional muito importante em função da sua capacidade de exercício da diplomacia, com uma burocracia bastante bem treinada, a partir de 1946 com o Instituto Rio Branco, que foi criada no Ministério das Relações Exteriores do Brasil – o Itamaraty. Então, isso também gera alguma, digamos, diferenciação por parte do Brasil na comparação com outros países em desenvolvimento, de outras potências emergentes, em função da sua capacidade de exercício diplomático, da sua capacidade de negociação em âmbitos regionais e multilaterais em função dessa histórica e tradicional formação que têm os nossos diplomatas, os nossos agentes diplomáticos. Outro elemento que me parece muito importante no debate sobre as desigualdades, para além das desigualdades entre os Estados, diz respeito às desigualdades que marcam a capacidade de ação dos demais atores. Vamos tomar dois exemplos: as empresas de determinados Estados, empresas nacionais em processo de internacionalização. E isso nos remete a todo um debate sobre os modelos de desenvolvimento dos Estados nacionais e as variedades de capitalismo existentes em diferentes contextos regionais. Haverá empresas que necessitarão, nos seus contextos nacionais, uma maior aportação de recursos, um maior apoio e suporte por parte dos dirigentes políticos para o seu processo de internacionalização, como é o caso do Brasil. As empresas brasileiras em processo de internacionalização, no Brasil, isso ocorre de uma forma muito diferente e desigual quando comparado com o processo de internacionalização das empresas no âmbito europeu ou no caso dos Estados Unidos ou do próprio Japão. Eu acho que os operadores econômicos também se confrontam com assimetrias e desigualdades que são muito estruturantes da ordem mundial contemporânea. Um outro exemplo que nós poderíamos dar com relação às organizações não governamentais. Se nós tomarmos o conjunto das organizações não governamentais com estatuto de observadoras nas organizações e agências das Nações Unidas, por exemplo, nós vamos perceber uma presença majoritária de organizações não governamentais de países europeus, dos Estados Unidos, e em muito menor medida, do Canadá, do Japão... fundamentalmente dos países do bloco ocidental. A gente vai ter uma presença muito menos expressiva de ONGs latino americanas, e ainda menos expressiva, apesar do tamanho e da relevância estratégica do continente africano, de ONGs de países africanos. É claro que isso reflete uma outra medalha, enfim, um outro lado da medalha que é importante de ser salientado e ressaltado, que é uma outra dimensão da desigualdade da ordem mundial contemporânea. Ou seja, o espaço mundial ele é recortado por essas desigualdades com relação à capacidade de ação dos Estados, mas também de outros atores como as empresas e as organizações não governamentais. Se nós tomarmos algumas conferências das Nações Unidas, por exemplo, conferência do Rio em 92, conferência Rio+20 que ocorreu vinte anos após a conferência das Nações Unidas sobre meio ambiente e desenvolvimento, em 1992, nós vamos perceber um grau de participação diferenciado de organizações não governamentais, e que reflete uma desigualdade que está posta com relação a esta capacidade de ação dos cidadãos, dos militantes, dos ativistas internacionais em torno dos temas ambientais, ecológicos, de mudança climática, de proteção da biodiversidade, de combate contra o desflorestamento e a desertificação nos seus países, nas suas regiões e no mundo. Outro aspecto importante – esse seria o terceiro aspecto importante desse tema sobre desigualdades no espaço mundial contemporâneo – diz respeito aos próprios indicadores, ou seja, nós vamos perceber, se nós olharmos uma matriz sobre os indicadores de desenvolvimento humano, sobre os indicadores de desigualdade no mundo, o indicador GINI, por exemplo, nós vamos perceber que ainda existe uma grande desigualdade que estrutura as relações internacionais contemporâneas com relação a determinados países que têm um indicador de desenvolvimento humano (o IDH) muito elevado, isso se concentra fundamentalmente no âmbito da Europa ocidental e da América do Norte e alguns países da Ásia oriental, sobretudo a Coreia do Sul e o Japão, e uma massa de países em desenvolvimento aonde esses indicadores de desenvolvimento humano são muito baixos, aonde a fragmentação social, a capacidade de ação do Estado em termos de formulação de políticas públicas ainda é bastante deficitária, e se reflete em indicadores sociais muito diferenciados e muito desiguais entre países do Norte e país do Sul. Eu acho que essa questão dos indicadores, quando nós projetamos um mapa sobre indicadores do desenvolvimento humano no mundo, nós percebemos uma fratura social muito clara entre países mais desenvolvidos, países com indicadores muito mais avançados no que diz respeito à educação das crianças, à alfabetização, à presença de crianças e adolescentes nas escolas, jovens nas universidades, para tomarmos o setor da educação, ou acesso a serviços públicos de saúde, de transporte, de mobilidade urbana, países aonde esses indicadores são muito avançados, e uma massa de países em desenvolvimento que são quantitativamente a maioria dos países do planeta aonde esses indicadores são muito deficitários, muito abaixo da média daquilo que seria necessário para que se tivesse uma qualidade de vida digna para todos dentro desse espaço mundial contemporâneo. É claro que os padrões de desigualdades são distintos entre os próprios países do Norte e os próprios países do Sul. Existe uma fratura muito clara, uma fratura de relações Norte-Sul, quando olhamos para esses indicadores, mas também existe uma diferenciação muito clara entre países do Sul e entre países do Norte com relação aos padrões de desigualdade. E daí nós vamos encontrar um caso emblemático do próprio Brasil, aonde os padrões de desigualdade são históricos e de difícil combate por meio de políticas públicas, e o quanto isso é tributário, e reflete, na verdade, uma longa trajetória histórica, que vem desde o seu processo de colonização, aonde uma série de fenômenos estruturais e que estão na base do modelo de desenvolvimento brasileiro, são de difícil combate por meio de políticas públicas mais efetivas. A partir do início dos anos 2000, uma série de políticas públicas foram colocadas em prática no Brasil, foram implementadas no Brasil, no sentido de tentar reduzir algumas dessas desigualdades sociais tão perenes ao longo da história dos modelos de desenvolvimento brasileiro. Mas ainda percebemos o quanto essas medidas – Bolsa Família, políticas de cotas, acesso à educação superior, etc – têm sido ainda bastante limitadas com relação à redução desse padrão histórico de desigualdade no país. Há uma redução do indicador... uma melhor do indicador GINI no Brasil entre os anos 2000 e 2015 aproximadamente, mas isso ainda não nos retira de uma lista bastante ruim em âmbitos de comparação planetária, o Brasil ainda sendo um país profundamente desigual, com um modelo de desenvolvimento com uma estratificação social muito forte e muito reprodutora de desigualdades sociais e econômicas. Outro aspecto importante, além desses indicadores sociais, diz respeito às distribuições de recursos e capacidades de ação internacionalmente – aquilo a que eu refleti sobre anteriormente o aspecto da capacidade de ação diplomática dos Estados. Isso também é um elemento muito importante nos diferentes processos decisórios, políticos, econômicos que ocorrem nas negociações multilaterais e regionais. Há desigualdade muito clara entre determinados países que são considerados países com capacidade de formulação de normas gerais para a ordem mundial contemporânea, e aqueles países que são considerados países que devem seguir as normas que são definidas pelos tomadores de decisão mais importantes. Isso historicamente nos remete, inclusive, a algumas categorias que já existiam desde a Sociedade das Nações, a Liga das Nações, no início do século XX, quando ao final da 1ª Guerra Mundial em torno de alguns princípios definidos pelo presidente norte-americano Woodrow Wilson, vários países do mundo se juntaram em Versalhes e no âmbito das negociações de paz formularam uma série de princípios, definiram critérios para o estabelecimento da Sociedade das Nações, também conhecido como Liga das Nações. O Brasil era um dos países fundadores da Liga das Nações, mas era interessante perceber que apesar de ser um país fundador da Liga das Nações, o Brasil era considerado um país de interesse específico, e não um país de interesse geral, à luz do processo decisório que estava ali sendo debatido na Liga das Nações. Ou seja, o Brasil, desde o momento em que ele está ingressando nessa ordem internacional no século XX, ele não era reconhecido, em termos de estatuto e representação, como um país com capacidade de formulação de normas e regras mais gerais, do interesse coletivo das relações internacionais, mas um país com interesses específicos. Se nós fizermos uma... atravessarmos ao longo do século XX, nós vamos perceber que essa diferenciação, essa distinção de status ela é muito claramente marcada nas relações internacionais. Há alguns países que são considerados países que formulam normas, e fundamentalmente isso é quase que um monopólio das potências mais importantes, alguns países europeus – não todos -, os Estados Unidos e o Japão que se soma em torno, por exemplo, nós poderíamos lembrar o âmbito do G7 como um âmbito institucional, embora não formalizado, de países que são considerados como países formuladores de normas internacionais, certo? E, por outro lado, reflexo dessa desigualdade, aqueles países que devem obedecer às regras estabelecidas. Vamos dar um exemplo recente, um exemplo histórico recente, que ocorreu em 2003, no âmbito das negociações da Organização Mundial do Comércio, quando Brasil, Índia, China e uma série de países em desenvolvimento se contrapuseram a essa tendência histórica de serem considerados países que deveriam somente obedecer às normas estabelecidas pelos mais importantes, pelas potências mais importantes, e se juntaram em torno de uma articulação política chamada G20 comercial, e obstaculizaram o prosseguimento, a continuidade daquelas negociações comerciais multilaterais. Essa é uma ilustração muito clara de como determinados países em desenvolvimento, determinadas potências emergentes do Sul resolvem se rebelar contra essa diferenciação, essa desigualdade de estatuto que também atravessa a construção desse espaço mundial contemporâneo. Então, essa é uma outra dimensão da desigualdade que me parece muito importante, que não é material mas que tem enormes repercussões sobre inclusive o ordenamento material do espaço mundial contemporâneo.